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Créditos: Fotos de Mauro Moraes; Textos de Thalita Noce; Revisão de Daniele Corrêa.
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O Divino

  No início, o que havia era o belo. Não havia medo algum, ou dor. Em seu lugar, ruborizava a alma um pulsante encantamento por cada cenário descortinado no grande palco em que caíra. Permaneceram-me, por décadas, latente, as primeiras impressões, sensações primárias de maravilhamento. O vislumbre pelo todo e o vislumbre pelo detalhe. Singular, comum, pequenino, grandioso. Não nos parece natural, aqui, neste lugar, que a divindade permaneça dentro de si por tanto. Não nos parece; porém, que o perverso é a sua corrupção. No início, o que havia era o puro. A pureza, no entanto, era maculada pelas dores de sua queda.

Delírio

O que faz aqui? Você não nos é igual. Todos acham que são, acham que sabem. Inflam-se ao dizer como são bravos e lidam bem com os próprios percalços e o calvário individual. Não, não é como nós. Eu os reconheço. Você, não. Tem lá suas aflições e foi esmagado pela vida, mas, certamente, não é um de nós. Aqui somos quebrados desde sempre, sem a necessidade de peso algum. O que quer? Pretende nos analisar. A troco de quê? Já disse, vejo que não é um de nós, tampouco é doutor. O que me aconteceu? Para quê saber? Curioso. Vá!... Somos todos, tem a minha simpatia. Do mais, é bom conversar, embora eu não reserve a mim o hábito de fazê-lo. Havia cinco dias que não dormia, tinha os olhos estalados e aflitos, não como o insone que simplesmente permanece desperto. Irrompia dentro da cabeça grande barulho aflitivo e crônico que não me permitia nada além de desespero. Tudo se tornou laranja. Ao caminhar, pessoas deixavam rastros cerúleos, tal qual uma minhoca cavando seu buraco. Não cons

Obsessão

Olhe suas mãos, veja como estão contaminadas. Lave. Uma vez, duas vezes, não é o suficiente; três. Sim, este é o mínimo. Você está contaminada. Não bastam apenas água e sabão. Use álcool até queimar a superfície cutânea que envolve seus músculos. Arde. Há alguma purificação nisto que te liberta das mazelas que vão além de mãos e pés sujos. Um ritual que te livra dos mais diversos problemas que você acreditou, em vão, terem existido. Você não está apenas se limpando, está trocando de pele. Tem agora, pelo ressecamento que lhe coça, as mãos de uma velha. Teus dedos roçam uns sobre os outros e depositam entre unhas a pele que se desfaz. Tudo precisa estar branco, limpo, melancolicamente puro. Se por vezes os nervos te excitam de maneiras favoráveis e majestosas, também, noutras, rogam a presença do algoz. Não é senhora dos seus pensamentos, ninguém o é; ninguém pensa só, conclui. Imagens lhe poluem a mente deliberadamente, a luta por contê-las não lhe renega nada além da exaust

Anedonia

Não quis falar. Nada lhe interessava: política, romances, dinheiro ou qualquer assunto. Tornou-se pedaço de pele inerte, expressão da apatia ou, para uma definição mais correta, tinha a expressão de coisa nenhuma. Das poucas energias, lhe restava apenas certo tipo de humanidade, queria saber do bem estar alheio. Não conseguia imaginar outra pessoa sofrendo de tamanha tristeza, que na verdade era sua. A isso, caro leitor, não se confunda com nobreza de espírito, nem lhe atribua glórias pessoais. Alcança aquela figura sentada, vagueando o nada com as vistas? Nem sempre foi assim. Por muitos anos, que a própria criatura julgava ser todo o sempre, e possivelmente fosse, travou batalhas internas entre os muitos de seus eus. Alguns tão belos, outros, autodestrutivos. Suponho que um mau gênio esteja lhe sobressaindo nos últimos anos, um ego cansado; tentando destruir a si mesmo e a todos os outros. Em seus piores momentos, não temeu nem mesmo o inferno. Por vezes, em sua loucura, de

Ressurreição

Pousou-me a mão, grande pena que caíra do pássaro mítico, ressurgido das cinzas para escrever alegrias. Tenho o coração brando e o sorriso leve, no íntimo carrego grandes súplicas de perdão; não são, como outrora, devotamentos pesados, mas súplicas laureadas por sentimentos de contentamento e gratidão. Desfazendo-me das quimeras alegóricas e literárias, venho dizer sobre certo tipo de cura, não total, mas estável, ainda que carregada pelas impressões do passado. Correndo o risco de discorrer parágrafos lamechados, eis aqui a força motriz que nos salva a todos: se o medo da danação eterna não vence o desequilíbrio, não nos motiva vitória, nos resta o amor àqueles que compartilham nossa jornada. Sei que em tempos de desapego, de egoísmos transfigurados, defendidos em falso estandarte de liberdade, essa palavra, amor, não está em voga. No entanto, ela me foi dolorosamente lapidada. Não farei aqui, entretanto, um discurso ingênuo, é necessária ajuda específica. Precisamos encarar o pr